sábado, 29 de agosto de 2020

Folha que o Vento Leva

 

Ele prestou serviço no Instituto por 29 anos. Aí veio a peste. A tal covid 19.Ele se manteve firme e forte ,cumprindo sua jornada e tomando as devidas precauções, utilizando o que era oferecido pela empresa. Havia falta de EPI ( Equipamento de Proteção Individual) adequado, sim. O que não havia era permissão para falar .Haviam pessoas, companheiros seus, se infectando e adoecendo...e o silêncio tétrico e pesado no ar... e mais pessoas se infectando. Ele tinha que continuar ,Havia seu compromisso .E contas para pagar .O tempo lhe daria aposentadoria; a empresa não. Agora nem férias poderiam tirar.

Clareliz ,sua companheira de trincheira, fora atingida pela peste .Dona de casa ,servidora pública, mãe e avó dedicada. Trabalhou mesmo após surgirem os primeiros sintomas, pois não tinha autorização para o afastamento. Com o agravamento dos sintomas, foi feito o teste .A confirmação e a internação foram rápidas .Cerca de 15 dias na UTI onde por diversas vezes havia trabalhado. Aplausos hipócritas na saída do carro fúnebre.

-“Não tem como afirmar que foi aqui que ela pegou o vírus”.

Observação infeliz de quem pouco se importa e menos ainda se sensibiliza.

-“Ela já estava realocada em funções administrativas atendendo indiretamente os pacientes não covid...mas não se pode ficar vigiando as pessoa o tempo todo”

A culpa é dela então?...teria saído de suas funções para se expor e se contaminar?

Oh, relato insensato e insensível.

Ele ouviu essas e outras “justificativas” de quem pouco se importa com a vida, a saúde e/ou desgraça alheia.

Desânimo, sensação de impotência, terror camuflado em coragem, força forçada por falta de opção e a inevitável pergunta que não quer calar; serei eu o próximo número da estatística?

Veio o dia atípico de sensações atípicas, ou típicas de quem fora lambido por Thanatus.

Então buscou o serviço de saúde mais próximo e fora afastado pelos 14 dias de praxe, contudo fora contatado por seus supervisores e advertido do prejuízo que teria em seus vencimentos ,ainda que justificado por atestado médico.

Seu retorno fora marcado de incompreensões, ameaças  e observações ofensivas; ”Não deveria estar aqui. Está contaminado .Tinha que ficar em sua casa.”

Posto isso, ainda exigiam outro atestado ,uma vez que o que havia trazido ,fora “perdido” pelo serviço de recursos humanos.

Teria retomado suas atividades; se não o fez, foi por ter sido rapidamente enfraquecido pela doença e logo internado na UTI onde por longos anos prestara serviço.

Contudo sua estada não chegara à 30 dias.

Tivera algum tempo para rememorar Clareliz. Também Inezita e Júlio lhe vieram à superfície da mente. Foram ambos atingidos. Júlio optou por se internar em outro serviço, pois tinha convênio e achou por bem deixar a vaga à alguém que mais necessitasse

Inezita não tivera opção e fora internada nessa mesma UTI, e como Clareliz, fora vencida pela peste. Seria ele o terceiro guerreiro a ser engolido pela UTI dessa instituição...não era uma pergunta.

Lá fora, torcidas contra e à favor de seu restabelecimento...

Que mundo é esse?

Com que tipo de ser humano trabalhamos?

Júlio retornara depois de 30 dias de torcidas , orações e incertezas em uma UTI...e fora aplaudido por seus companheiros.

Wellington também fora aplaudido por seus companheiros na saída do hospital .Mas não pôde agradecer...estava dentro de um caixão.

 

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