Mês Julho. Inverno rigoroso e as previsões para o
resto da semana nada auspiciosas.
O som estridente do
despertador desconhece compaixão. Ela o desliga e por um instante ainda se
desliga da realidade. Cinco ...dez minutos e em pouco tempo se vê em ruas desertas e gélidas a caminho do
hospital onde fora admitida para a equipe de enfermagem há quase 30 anos.
A enfermagem não é um
sacerdócio e menos ainda um meretrício. É mais um trabalho digno entre tantos
outros ,mas com frequentes ataques da mídia a enxovalhar a reputação de seus
profissionais com imagens e ideias deturpadas de mulheres exiguamente vestidas
e de atitudes dignas de reproche.
Há que se afirmar ainda
que não há sombra de romantismo , coisa que um ou outro espectador possa cogitar .Há antes o drama e atualmente o
revezar constante entre o drama e a tragédia com o advento da pandemia de covid
19,o que mudou ainda que temporariamente o olhar sobre o profissional da saúde,
que passou de “peão” á “linha de frente” do combate à peste que parece disposta
a dizimar um terço da humanidade... apocalipticamente.
Ajustou a máscara de
tecido à face e seguiu em seu andar apressado até se juntar aos outros tantos
de faces cobertas e olhares oscilantes entre perdidos e temerosos .Medo é
cautela. E junto à cobertura da face e o frasquinho de álcool em gel para as
mãos, é tudo o que se tem para hoje.
As pesquisas de vacina
caminham com vagar e a morte avança em trote largo. O governante do país
debocha de tudo e de todos :”E daí?”...”Todo mundo vai morrer um dia”...”Querem
que eu faça o quê?”...
Ela chega ao destino. E agradece à Deus por ter chegado .O dedo de “iceberg ”toca o ponto eletrônico e ela segue adiante qual rês indo para o matadouro. Agradece à Deus por ter um emprego .Sobe os degraus como quem leva tornozeleiras pesando toneladas. Chega ao balcão de informações onde conseguirá dar continuidade ao trabalho graças à experiência de longos anos no setor e por ter armazenado no celular informações complementares, pois todo o seu material de trabalho fora retirado e até mesmo o telefone fora colocado em uma sala de entulhos para que ela não tivesse acesso...ele continuava a tocar mas não havia quem o atendesse.
Até a cadeira do balcão
era frequentemente retirada pela supervisora do setor para garantir que ela se
sentisse desconfortável e talvez não voltasse mais. Tais achaques passaram a
ocorrer quando ela não aceitou a transferência feita de forma repentina e sem
motivos plausíveis ,para um setor onde não poderia atuar por motivo de
restrições médicas conforme justificado com relatórios e laudo médico .Os
atuais gestores não aceitam ser contrariados .O assédio moral é prática
conhecida e arraigada no serviço público .Há vítimas que chegam ao suicídio por
não suportar tanta pressão e humilhação .E não são raros os casos ,infelizmente...
Por volta das doze
horas ,ela descia as escadas rumo ao refeitório quando deparou com mais uma
manifestação de aplausos na saída de um carro fúnebre. Mais um companheiro de jornada abatido em sua
labuta pelo pão.
Respirou fundo, fez uma
prece e retornou. A refeição não lhe desceria.
Agradeceu à Deus pela
vida.
O retorno ao lar com a
sensação de perda mesclada ao alívio é realidade de muitos.
Colegas se
infectando ...outros morrendo...
O presidente
debochando.
Os supervisores
achacando.
A vida girando ... não
mais como um carrossel: roleta russa.